O ano é 1847, a teoria vigente era que as pessoas adoeciam pela vontade de Deus, nasciam com suas futuras doenças, ou que os “miasmas” as causavam. Seriam ainda necessárias quatro décadas para se vislumbrar a ideia de que doenças poderiam ser causadas por seres tão pequenos a ponto de não serem visíveis, iniciando a era microbiológica da medicina. Ignaz Semmelweis, médico, travava, neste ano, um violento debate com seus superiores na maternidade do Hospital Geral de Viena. Uma doença mortal para a mãe e seu rebento, conhecida como febre puerperal, acometia frequentemente as parturientes da ala 1 e, apenas raramente, as parturientes da ala 2 da citada maternidade. Na tentativa de reduzir a incidência do terrível mal, Semmelweis implantou sucessivas mudanças na ala 1 com o intuito de que tudo se desse da mesma forma que se dava na ala 2. Mudou a posição do parto, fechou janelas e chegou a pedir que o padre responsável pela extrema unção fizesse o mesmo trajeto nas duas alas, mas a incidência da maldita febre continuava de três a dez vezes maior na ala 1 que na ala 2. Por fim, ao observar que os partos da ala 1 eram conduzidos por estudantes que faziam autópsias no necrotério do hospital, enquanto na ala 2 eram feitos por parteiras, Semmelweis determinou que os estudantes lavassem as mãos antes do atendimento às parturientes, evitando, de maneira eficaz, a contaminação.
Lavar as mãos era uma ideia completamente ridícula para a época e foi duramente atacada por seus pares que, à luz do conhecimento existente, não viam nenhuma lógica nas tentativas de Semmelweis e preferiam se manter fieis à teoria miasmática das doenças. Mas foi assim, contra a lógica vigente, sem conhecer os micróbios e sem acesso a antibióticos, que se observou drástica redução na incidência da febre puerperal, sendo a mesma igualada em ambas as alas da maternidade do Hospital Geral de Viena. Lavar as mãos se tornou a segunda medida que mais salvou vidas na história da humanidade, perdendo apenas para a fervura da água. É necessário humildade para se despir das teorias e abraçar os fatos. E o fato era que a incidência da moléstia diminuíra com a lavagem das mãos em todos os locais onde foi aplicada, mesmo que a explicação para isto só viesse a surgir décadas depois.
O ano é 2020, a teoria vigente é que fechar partes do comércio obrigaria pessoas a ficar em casa e isso reduziria a contaminação por um vírus respiratório. Recorrendo aos fatos, o problema com essa teoria é que vários países que não fecharam seus comércios para controlar a doença (Japão, Hong Kong, Taiwan, Coreia do Sul, Suécia, Uruguai) tiveram resultados melhores que vários países que se fecharam (Itália, Bélgica, Espanha, França, Inglaterra, EUA) e, nestes últimos, cerca de 95% dos diagnósticos se deram após o fechamento do comércio (2/3 destes após mais de 14 dias do fechamento).
Um estudo conduzido pelo JP Morgan observou que, nos Estados Unidos, a possibilidade de um doente contaminar outra pessoa foi maior durante o período de confinamento e caiu após a reabertura do comércio. O governo da Espanha e o do estado de Nova Iorque realizaram amplos estudos de detecção de anticorpos na sua população. Os resultados foram surpreendentes em ambos os lugares: trabalhadores que continuaram trabalhando se contaminaram significativamente menos que os que foram proibidos de trabalhar. Lembrando que entre aqueles que continuaram trabalhando estavam médicos e enfermeiras mas, mesmo estes, se contaminaram menos que os trabalhadores que foram impedidos de trabalhar. E tal achado ocorreu tanto na Espanha, quanto em Nova Iorque. Aqui no Brasil, estados vizinhos como Minas Gerais e São Paulo adotaram as mesmas medidas de fechamento, nas mesmas datas, e colheram resultados completamente diferentes. O Japão com sua enorme densidade demográfica e população idosa, mantendo seu comércio aberto, teria tudo para vivenciar uma catástrofe, mas morreram menos pessoas Japão que no árido estado do Ceará. Qual epidemiologista teria previsto tais eventos?
Por qual motivo faço o leitor revisitar estes fatos? Para lembrar do vírus da arrogância. Para lembrá-los que desconhecemos os detalhes dos mecanismos que levam à disseminação populacional de um vírus respiratório de forma semelhante que meus colegas em meados do século XIX desconheciam os detalhes da contaminação que levava à febre puerperal. No momento, estamos na fase onde Semmelweis pedia para que fosse alterada a posição do parto, janelas fossem fechadas, ou padres mudassem seus trajetos de maneira inútil. É necessário humildade para se despir das teorias e abraçar os fatos. E os fatos são que a disseminação tem se dado de maneira completamente imprevisível, não temos a menor ideia da efetividade das medidas tomadas e explicações realmente convincentes do que está acontecendo só surgirão, talvez, daqui a algumas décadas.
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