A dor imaginária, ou: o totalitarismo da transparência

A dor imaginária, ou: o totalitarismo da transparência

A falta de privacidade na internet - Dr. Cristiano Nabuco - UOL

Um dos traços comuns ao espírito romântico é a valorização da espontaneidade: mais que estar certo ou errado, importa ser autêntico. Sempre que você pensa assim, está sendo visitado pela “doença romântica”. Decerto, é uma sedução viver constantemente crendo na primazia da imaginação sobre o conhecimento. 

Do rol de paradoxos ou ambivalências responsáveis por nossa agonia (ou sintomáticas dela) no século XXI, está o orgulho de promover a atrofia da capacidade imaginativa em razão da colonização da mente pelo mundo tecnológico (nenhuma criança precisa imaginar as cenas que ilustravam antigas brincadeiras se os tablets, games e televisores permanentemente o fazem) e, ao mesmo tempo, pregar a nostalgia da “imaginação no poder”, um dos lemas do desventurado Maio de 68. 

Trata-se de um sistema de retroalimentação: a imaginação do vanguardismo niilista de Paris e de Sorbonne em 68 foi, na verdade, uma das causadoras da aniquilação tecnológica da imaginação, porque minou a resistência familiar à desordem (digamos, reiterando a crítica de textos anteriores) liberal; esta última, por sua vez, esvaziou as almas do conteúdo cristão para que a semente da revolta socialista/comunista germinasse, conforme explica Pio XI na Divini Redemptoris de 1937 (mesmo o liberal José Guilherme Merquior apontava, embora erroneamente quanto à origem, a relação entre o liberalismo e a crise da noção cristã de Summum Bonum). 

Querem um exemplo? O grande jurista espanhol Miguel Ayuso nos mostra a curiosa relação causal entre o antinatalismo e o pensamento de autores como David Ricardo (que dizia que o estado deveria reprimir a ação caritativa da Igreja, porque contribuía com a procriação dos pobres). Não por acaso, Wilhelm Reich, um dos pais da revolução sexual, afirmou em 1949 que os EUA eram um paraíso da liberdade sexual. Com efeito, as teorias sociais atuais mais esdrúxulas não provêm de Cuba ou da Coreia do Norte e sim das universidades americanas. 

Para tristeza dos nossos otimistas, diga-se de passagem, é falso asseverar que a imaginação destruída cede necessariamente espaço à inteligência; estas não são inversamente proporcionais, isto é, ambas podem ser perfeita e simultaneamente destruídas. 

De toda forma, conjugam-se atualmente a massa opinante esquerdista e as benesses da economia global (não mais a administração da escassez e sim o que Aristóteles chamaria crematística, uma espécie de enfermidade utópica da economia) para nos impor um novo tipo de totalitarismo da transparência

O totalitarismo não se distingue pela violência ostensiva, mas pelo exercício de um poder ideológico-político arbitrário e socialmente onipresente; sob tal regime, não há distinção efetiva entre público e privado, já que o poder central observa e controla todos os passos dos cidadãos em nome de um ideal impossível. 

A constante exposição pública de temas naturalmente privados (como o sexo) é sinal de “maturidade” civilizacional ou um subterfúgio, uma desculpa para a naturalização do espírito totalitário? 

Uma das origens intelectuais da transparência como imperativo totalitário está sem dúvida em Jean-Jacques Rousseau. Para ele, é preciso que cada um revele toute la vérité de la nature -- a verdade natural intacta de um coração feito de cristal, translúcido, a ser vigiado por todos. Daí sua predileção por cidades pequenas, onde o cidadão está sempre sob os olhares dos outros e a “política pode controlá-los”, explica na Carta a d’Alembert, de 1758; o fundamento da doutrina moral que pode substituir a todos os demais, completa, é: “não faça e não diga nada que o mundo inteiro não possa ver ou ouvir. Eu, por meu turno, sempre tive em grande estima aquele romano que desejava que sua casa fosse edificada de tal modo que todos pudessem ver o que ali se passasse” (Júlia ou a Nova Heloísa, 1761). A transparência não teria um acento cognitivo e sim moral. 

Esse acento, hoje, quando se defende estarmos na era post-privacy, assume-se como uniformização dos indivíduos, aplainamento igualitário que desconsidera qualquer resistência: o passo seguinte do apelo totalitário e de transparência excessiva é, em função do igualitarismo, a “exigência de emoções públicas”, o regime de virtue signalling, para compor o nosso espetáculo de incontinência emocional e vilania política. Ser vítima, por exemplo, condição historicamente desprezada, passou a ser lucrativo. 

Não são poucos os contribuintes à causa. Recentemente, o ator americano Ryan Reynolds foi mais um a se ajoelhar ante o tribunal da consciência pública. Em 2018, após elogiar o filme Pantera Negra, Reynolds foi acusado de hipocrisia por ter casado em 2012 com a atriz Blake Lively em Boone Hall, Carolina do Sul, uma antiga plantação onde 85 pessoas haviam sido escravizadas, parece, entre 1790 e 1810. Reynolds e esposa, claro, penitenciaram-se. Boone Hall deve ter-se tornado um local amaldiçoado, quem sabe? 

Afinal, a idolatria de estimação contemporânea sonha que é menos redentor deparar com pecados reais para se arrepender deles do que com imaginários.


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