Corria o ano de 1950 quando o renomado cientista atômico Leo Szilard anunciou o fim do mundo em cadeia radiofônica. O húngaro, um dos pais da era atômica, pasmou a audiência do programa de debates mais conhecido do rádio americano de então, a Mesa-redonda da Universidade de Chicago, ao mostrar como seria simples dar cabo da humanidade: envolver uma bomba de hidrogênio com cobalto-60 radioativo; logo, a nuvem tóxica, letal e silenciosa se difundiria com o vento e fulminaria a todos nas mais longínquas partes do orbe terrestre.
Um apressado golpe de vista nos poderia fazer concluir que o século XX foi o mais destrutivo da história meramente em virtude de sua capacidade técnica de aniquilamento. Com efeito, para já não falar do horror inefável das mortes em escala industrial produzidas por duas guerras mundiais, as palavras de Szilard sacudiram os espíritos dos circunstantes da Guerra Fria, tanto ensejando uma sorte de filmes e livros sobre cientistas que detinham nas mãos os destinos da humanidade, quanto antevendo ameaças realíssimas (em 1954 os EUA detonaram no Pacífico a sua maior bomba de hidrogênio e os soviéticos lançaram a Tsar em 1961).
Mas a época do fascismo, nazismo e comunismo foi a pior somente em função dos meios de assassínio físico ou a alma do homem do século XX foi a mais caótica de todos os tempos passados? Escusando-me da brevidade e simplismo desta reflexão para assunto tão complexo, creio estar seguro ao dizer que sim (e não guardo muito melhores esperanças aos nossos anos), entre outras razões porque a sociedade ocidental, por exemplo, a mais pujante e fascinante jamais vista, experimentou a consolidação do processo de formação da alma revolucionária. Corruptio optimi pessima est.
De qual espírito falamos? Da forma mentis erguida sobre as ruínas da Cristandade, nos termos das principais ideologias e suas derivações modernas e contemporâneas. O universo medieval, conquanto tivesse debilidades – romantizar o Medievo é um desserviço, porquanto, conforme assinala Leão XIII em suas magistrais linhas sobre os estudos históricos, Splendor Veritatis gaudet Ecclesia –, além de ter sido dos períodos áureos deste vale de lágrimas, informava os cidadãos na autoridade exterior à sua própria vontade, uma lei supra-histórica estava no horizonte de consciência: conta-se de um ladrão que, querendo dar-se em casamento pela segunda vez, incorrendo assim em adultério, intimou com as seguintes palavras um bispo que lhe resistira: “Não o mato, pois sei que, se o fizer, irá para o Céu”.
No vácuo moral, entrará em cena a força compensatória das leis. “A sociedade acumula leis como o doente acumula remédios”, explica Nicolás Gómez Dávila.
O revoltado é, qual Mefistófeles, o espírito que nega, impondo uma fronteira, um corte materialista. Não podendo aceitar a realidade tal como se lhe apresenta, deve destruí-la “para afirmar o que ele é, não para colaborar com ela”; a luta por imortalidade é corporificada no revolucionário; onde há limite metafísico, ele percebe escravidão; sua mente utópica é forjada num sonho não apenas improvável, mas impossível, aferrando-se às absurdidades não apesar delas, mas justo em consequência delas (ensinará outro húngaro, o filósofo Aurel Kolnai); o absurdo não será passível de refutação: na falta de coexistência social do máximo de liberdade e do máximo de igualdade, o revoltado vê um obstáculo imposto por usurpadores, não uma impossibilidade lógica. É como o Calígula da peça, que, na superexcitação louca da própria “liberdade”, exige ter nas mãos a lua.
A Revolução tem origem, claro, no non serviam luciferino. Sobre seu desenvolvimento histórico, surgiram muitas perspectivas, e, no caso do Ocidente, elas apontam mais ou menos para o explicitado por Plínio Corrêa de Oliveira em sua obra Revolução e Contra-Revolução (1959): a Pseudorreforma (e dizê-lo não é um ataque às pessoas), a Revolução Francesa e o Comunismo foram momentos históricos de substituição da autoridade e da ordem pela instalação de um simples e infundado “estado de coisas”. De inconformidades aqui e ali legítimas surgiram respostas desproporcionais. A primeira consistiu na implementação do espírito permanente de dúvida, liberalismo religioso e igualitarismo eclesiástico; a segunda, impondo o igualitarismo ateu/laicista, significou a insurreição também contra a autoridade civil, destronando o rei e afirmando a volonté générale, o engodo da soberania popular – coroando, portanto, a confusão de que desigualdade é necessariamente injustiça e a liberdade, como bem supremo; o último, o comunismo, aplicou tais diretrizes ao campo socioeconômico – “não há papas, nem reis, por que há patrões?”. É a dor da obediência, a sedição.
O Ocidente pós-cristão atual é permeado pelo niilismo, produto do longo processo de devastação do espírito pelas ideologias. As três camadas da Revolução (tendências ao mal presentes na alma, ideias justificadoras destas más inclinações e as ações, os fatos) representam agora o sensualismo de uma quarta Revolução, aquela que se dá nos corpos, nas paixões, para bestializar os indivíduos.
Podem objetar que, se os últimos cem anos tivessem mesmo sido a pior época da história espiritual humana, nós nos teríamos destruído, pois detivemos os meios. É discutível, porque se considere o seguinte impasse político: frente à ameaça de guerra atômica, como assegurar que uma proposta de armistício levará à deposição integral dos artefatos de destruição em massa, isto é, como garantir que não se tratará de uma submissão momentânea por parte de uma das forças em confronto? Numa palavra: hoje estarmos vivos se deve mais ao temor da própria destruição ou à grandeza moral dos líderes políticos do passado?
Seja como for, a resposta ao revolucionário só pode ser o contrarrevolucionário. E este, segundo dirá Joseph de Maistre, deve encarnar não uma revolução contrária, mas o contrário da revolução.
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