Distinguindo os homens dos meninos

Distinguindo os homens dos meninos


Santo Tomás de Aquino, na parte suplementar à monumental Suma Teológica, discorre sobre as auréolas (epígonos de glória e felicidade dos que triunfaram pelo amor no árduo combate da vida), perguntando-se se há distinção entre as auréolas das virgens, dos mártires e dos pregadores. Considerando os três inimigos da alma assinalados pela tradição cristã – a carne, o mundo e o diabo –, conclui que sim: as primeiras, diz o Santo, vencem a carne; os segundos, os mártires, suplantam o mundo; os terceiros espezinham os ardis da língua bífida do demônio, que devem ser expulsos não só do interior do próprio indivíduo, mas do coração dos outros (q. 96, art. 11). 

Numa sociedade moralmente podre ou deficitária, qualquer ato de mínima virtude causa um gigantesco espanto. Se é de mérito que alguém o pratique, porque a atmosfera reinante somente fornece estímulos à imoralidade e à corrupção, o efeito seguinte é a perda do senso das proporções na escala moral. Restituir ao dono um dinheiro encontrado numa esquina é o passaporte para a canonização, o mínimo a ser feito se transmuta no máximo possível. 

A cada par de anos, é típica do eleitor brasileiro a escolha do mal menor. Não é para menos: sobretudo no período republicano, o Brasil foi e tem sido, do ponto de vista de sua condução política, a instabilidade corporificada. 

Não exijo do presidente Jair Bolsonaro as virtudes que eu mesmo não tenho. Apesar de louvar tais grandezas e instigar no líder da República alinhamento com elas, a modesta expectativa do meu ceticismo político não o obriga a ser forjado na pureza das virgens aureoladas, na têmpera dos mártires triunfantes ou no aço da língua dos doutores e pregadores; só espero, em meio às concessões ao Centrão e congêneres em nome da “governabilidade”, se já não o suficiente, o mínimo necessário

Há um ponto onde o pragmatismo cruza a fronteira e se torna subserviência ao “sistema”. A política enquadrada como “arte do possível” pode se corromper integralmente e justificar a desfiguração de posições inegociáveis. Por exemplo, um dos maiores termômetros da qualidade do governo Bolsonaro é a indicação do novo ministro da Suprema (e vergonhosa) Corte do País. Equivocar-se (como fez) nesta escolha é fazer arte do impossível, é vender a finalidade do governo por um suposto meio de governança. 

Agora, para a vaga deixada por Celso de Mello no STF, foi feita a nomeação de Kássio Nunes, desembargador do TRF-1 (introduzido pelo controvertido Quinto constitucional) e homem de posições muitíssimo discutíveis. 

Lembram-se do famoso e invejável edital das lagostas do STF em 2019? A notícia é que, além das lagostas, o documento determinava que os vinhos estipulados fossem Tannat ou contivessem a uva Tannat; de safra igual ou posterior a 2010; que tivessem vencido ao menos quatro prêmios internacionais; envelhecidos em barril de carvalho francês ou americano "de primeiro uso e por um período de doze meses". Uma juíza suspendeu essa licitação, mas outro anulou a suspensão: Kássio Nunes Marques alegou que as iguarias previstas pelo edital se destinariam “às mais graduadas autoridades nacionais e estrangeiras, em compromissos oficiais nos quais a própria dignidade da Instituição, obviamente, é exposta”. Eis um dos exemplos. 

A nação quase diariamente se queda estupefata e tiranizada pela nossa Suprema Corte, sem ter na prática a quem apelar senão a Deus Todo-Poderoso – afinal, de acordo com o atual presidente do tribunal, Luiz Fux, depois da investidura da toga os ministros “não devem satisfação a absolutamente mais ninguém” (10º Encontro Nacional do Poder Judiciário, 5 de dezembro de 2016). 

Quando da nomeação do duvidoso Augusto Aras para a PGR, os ânimos se exaltaram menos do que talvez devessem, pois, afinal, são apenas dois anos (sem recondução ao mandato, evidente). Dada a vitaliciedade do cargo de ministro do Supremo, porém, o presidente não pode errar, ou estará incorrendo em absurdo pior que qualquer “toma lá, dá cá”, atitude tão repudiada por ocasião da campanha à Presidência. 

Os cleaners podem afirmar que Bolsonaro não tem muito o que fazer, que está de mãos atadas, pois o Senado não aprovaria o nome. Polêmico. Ademais, insistirão, a escolha de um nome alinhado aos interesses dos senadores seria estratégica, desfazendo uma eventual indisposição desses para com o presidente, e estes poderiam, por fim, pautar impeachment dos ministros do STF. Bolsonaro deveria, portanto, trocar a indicação fundamental de um bom ministro pela suposta promessa de que os senadores (muitos dos quais encrencados na Justiça) encampariam o afastamento dos juízes da Corte. De novo, seria o “politicamente possível”. 

Este argumento, todavia, torna invulnerável toda atitude desacertada do presidente. Quem pode o mais, pode o menos: se em algo de tamanha relevância o presidente opta equivocadamente com base em concessões (embora a população se tenha demonstrado sobejamente disposta a ir às ruas em seu apoio, também decerto caso ele expusesse a reprovação dos senadores a uma boa indicação), toda crítica deve calar-se, a cobrança popular praticamente não tem mais razão de ser; é engordar o porco tupiniquim para esquerdistas e liberais reinarem – mas apenas após os oito anos de governo, claro... 

“Quando da sociedade civil é desterrada a religião e repudiada a autoridade da Revelação, (...) perde-se a verdadeira ideia da justiça e do direito e, em tal lugar, triunfam a força e a violência”, disse Pio IX na Quanta Cura (n. 4). É momento de Bolsonaro primar pela integridade interior, prestar contas diante da mais fundamental testemunha de seus atos e Verdade Encarnada. “E a verdade vos libertará...”.


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