Pela boca do Padre Brown, o sacerdote detetive de Chesterton, conhecemos que “quando se deixa de acreditar em Deus, passa-se a acreditar em qualquer coisa”, e está certa a personagem. Como Arão, sucumbindo à idolatria da impaciência pela ausência de Moisés e criando assim o bezerro de ouro (em cena magistralmente pintada por Poussin), se os homens descuram da fé no verdadeiro Criador, logo elegerão para si o sexo, o dinheiro e outros falsos deuses.
Dentre os ídolos aos quais pode a estupidez se aferrar, talvez o mais patético seja o culto de si mesmo, a egolatria humana. Em decorrência de maciço envenenamento cultural, hoje este culto, desde sempre à espreita, é não somente tolerado, é louvado, propagandeado em escala jamais vista, tornando-nos orgulhosos da nossa baixeza.
Apartado da raiz transcendente e confinado, portanto, na materialidade, o homem é tomado pelo desespero de uma vida à qual ele tem de se apegar com todas as forças, daí fenômenos como a devoção exagerada da própria saúde (ou a escravização pela opinião alheia, o terror em face dos “cancelamentos”).
A questão do coronavírus é ilustrativa. Na era da informação, a nuvem de narrativas nos lança numa espécie de “náusea cognitiva”, variante real da náusea que a balela sartreana chamaria existencial, entorpecendo-nos para a verdade, anestesiando-nos numa confusão mental paralisante. As máscaras surtem efeito? É moralmente lícito e necessário vacinar-se? E quanto à velocidade de sua produção? Quantos são os mortos de e por Covid-19? São todas perguntas importantes, sobre as quais paira ainda uma névoa de enganações.
Provavelmente, nunca antes se viu uma doença de tão baixa letalidade ser responsável por agitações sociais tão amplas. O mundo continua sendo acometido de enfermidades e problemas muitíssimo mais graves (ou igualmente graves), que não suscitam campanhas e comoções mundiais. Pode-se responder que o aspecto chamativo do coronavírus é a sua rápida difusão, mas considero esta explicação reducionista. Os 800 mil suicídios e os 2 milhões de mortos por diarreia e pneumonia anuais não demandam ao menos uma fatia da preocupação demonstrada com relação ao Covid-19?
Com coisas do tipo, a desconfiança é inevitável, sobretudo para quem não identifica o discurso da OMS com a voz da ciência. Apesar da insistência de órgãos sanitários ideologicamente infiltrados, é razoável, por exemplo, deixar de tomar uma vacina cujo risco de morte seja praticamente equivalente ao risco implicado pela doença. As misérias geradas pelo combate à pandemia, a partir dos lockdowns e medidas restritivas irracionais (fome, transtorno de ansiedade e alto risco de depressão em crianças e adolescentes causados pelo isolamento social, déficit educacional, etc.), certamente farão a emenda sair pior que o soneto.
A meu ver, não há que dar crédito absoluto aos que afirmam ser a pandemia uma farsa total, nem tampouco aos alarmistas do apocalipse sanitário. As inconsistências de informação e incoerências argumentativas só permitem concluir que ninguém sabe bem de nada.
É traço definidor da literatura distópica o tema do esmagamento da individualidade (normalmente como uma falsa resposta ao erro contrário, o do individualismo liberal) ou uniformização para uma redefinição do ser humano, e é impossível, nestes tempos de pandemia, não lembrar Der Arbeiter (“O trabalhador”), ensaio do alemão Ernst Jünger, publicado em 1932, pouco antes da ascensão de Hitler. Na sociedade da nova ordem descrita por Jünger, o ponto de desumanização e submissão é representado pela onipresença das “máscaras”, que apagam seja as distinções fisionômicas particulares, seja a distinção entre masculino e feminino; “máscara de rosto para o desporto e altas velocidades (...) máscara de proteção para o trabalho”. Não há indivíduos, há tipos.
O rosto é janela da alma. Por ele, revelamos sentimentos e intenções, e, para além daquilo que Grice chama “sinais naturais”, que são interpretáveis por outros animais, a face humana (o ato humano) pode “significar”, ou seja, embutir uma intenção da alma num determinado ato a fim de comunicá-la. Não por acaso, outro filósofo põe no rosto um obstáculo ao assassinato. Façamos o exercício mental de imaginar uma sociedade de pessoas sem cabeça...
Narciso ouvira de Tirésias a profecia de vida longa se aquele “não se conhecesse”. Na fábula, a ruína de Narciso se deu pelo conhecimento da própria vaidade. Os Tirésias da nova ordem mundial, claro, também desejam nos livrar da nossa.
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